OS BONS TEMPOS DA SAVASSI...
Historiadores e acadêmicos vão dizer que o bairro se chama Funcionários – por ter abrigado nos primórdios os primeiros trabalhadores da nova capital de Minas. Legisladores vão insistir na tese e reforçar a afirmação que "oficialmente, o nome dado é esse mesmo". Mas nas páginas das últimas sete décadas de Belo Horizonte, desde a construção de uma padaria e as travessuras de uma turma, o termo Savassi se transformou num substantivo muito mais imponente que o simples título dado a uma região. Revela a efervescência cultural e o charme de um pedaço ilustre da cidade, por onde futuros expoentes da literatura, música, política, cinema, engenharia se misturavam com anônimos.
A partir dos anos 70, os imensos lotes residenciais começam a dar lugar a arranha-céus comerciais. E o público fiel da Padaria e Confeitaria Savassi, da Drogaria São Félix, do barbeiro Vicente e de tantos outros estabelecimentos que os donos sabiam os nomes dos clientes na ponta da língua, cede à especulação imobiliária e boa parte muda de endereço. Sem a clientela tradicional, a família Savassi decide mudar de ponto e, em 1977, abre novas portas, agora na Rua Rio Grande do Norte. Mas, o sobrenome já estava perpetuado na boca dos belo-horizontinos e a Praça Diogo de Vasconcelos, mesmo que informalmente, seria para sempre Savassi.
As peladas no cruzamento de Cristóvão Colombo e Getúlio Vargas seriam impensáveis, assim como o footing e a parada dos bondes no abrigo Pernambuco. Dificuldade menor, mas não tanto, teria e tem quem precisa estacionar na região. De bairro residencial a Savassi ficou conhecida pela diversidade de lojas, onde de tudo se encontrava.
Nesse cenário surgiram turmas novas, que já não ocupavam a porta da padaria, mas aproveitaram um quê de nostalgia para cantar suas histórias – como num remake do que se passou com seus pais e avôs. “Não diga que não vem me ver/De noite eu quero descansar/Ir ao cinema com você/Um filme à toa no Pathé...”, comporiam Samuel Rosa e Chico Amaral, num dos sucessos do Skank com citações ao bairro. Bem antes da música, ainda criança, o tecladista Henrique Portugal podia ver aquela mesma cena da casa do avô paterno, em frente ao cinema. “Passei parte da infância na Savassi. Lembro de quando eu caminhava pelo passeio, via a lenha do forno da padaria ser queimada. Naquela época, a cozinha ficava no andar de baixo e os funcionários jogavam a lenha no forno, por uma fenda que dava para a rua”, recorda.
A febre dos shoppings centers, no início da década de 1990, esfriou a badalação da Savassi e o glamour de anos anteriores transformou-se em decadência e estagnação. Até a descoberta dos café e das livrarias – um charme cosmopolita para a região. E finalmente a instalação de novos empreendimentos deram novos ares ao espaço. Os jovens estavam de volta e a praça, de novo, cheia nas tardes das sextas-feiras. “É um contexto urbano dinâmico e seu uso é alterado a cada geração. Antes era feita para o lazer mais genuíno e, hoje, para o consumo”, explica a professora de gestão do turismo e autora do estudo “Savassi: Transformações urbanas de um espaço turístico na Belo Horizonte do Século 21”, Ana Cristina Magalhães Costa.
Em 16 de março, completam-se 70 anos que os irmãos Hugo e Juca Savassi inauguraram uma padaria com o sobrenome da família no cruzamento das avenidas Paraúna (hoje Getúlio Vargas) e Cristóvão Colombo, em plena Praça 13 de Maio (a partir de 1943 denominada Diogo de Vasconcelos, em homenagem ao advogado e historiador mineiro). Não demorou para ser o novo ponto de encontro da galera. Da saída dos colégios Padre Machado, Santo Antônio e Sagrado Coração de Jesus, os adolescentes e jovens sequer passavam em casa e estacionavam na entrada da padaria até a última fornada. O grupo de mais de 60 amigos a cada dia recebia um novo agregado. Ou seria um aliado para os duelos contra as turmas rivais? Ou mais um atacante para as peladas de rua? Da janela de casa, o futuro presidente Tancredo Neves (1910-1985), na época morando com a família numa das esquinas da praça, via a garotada brincar de bola. Sempre simpática, dona Júlia Kubitschek (1873-1971) acenava para os vizinhos, que podiam ser os irmãos Mendes Campos, Fernando Sabino (1923-2004) ou o sempre presente Roberto Drummond (1939-2002) – que não se cansava de ir às livrarias para contabilizar cada nova centena de cópias vendidas e hoje observa cada passo da praça.
Atendendo ao clamor de Pacífico Mascarenhas, Clívio, Rogério, Cacique, Zeca Martins e tantos outros integrantes da imortalizada Turma da Savassi, personalidades da MPB cediam alguns minutos para entoar canções de amor nas janelas das moças pretendidas. A conquista era diária, mas nada como contar com o apoio de Nelson Gonçalves, Dick Farney, Cauby Peixoto e, por mais de uma vez, de Milton Nascimento – enquanto o desconhecido Bituca morou num quarto de pensão, na Rua Antônio de Albuquerque, antes de seguir para o Rio e ser apresentado à nata da MPB. Ele aproveitava para fazer pequenas apresentações nas noites, dos bares da região.
Era o pontapé da vida noturna, que anos mais tarde viria a ser reconhecida pelo rock, dos anos 80 e 90, e, hoje, tem as madrugadas de melancolia e diversidade sexual com os emos, no terceiro milênio. Há anos prometida, enfim, a revitalização deve sair do papel e aí… o que será da Savassi?
Espaço já alugado e o material comprado, mas era 1939 e o principal para a inauguração da padaria dependia dos alemães. Os fornos elétricos seriam importados, e, no entanto, naquele ano a produção bélica era mais importante e o pãozinho de sal dos irmãos Hugo e Juca teve de esperar um pouco mais. Em 16 de março do ano seguinte, finalmente, seria inaugurada a Padaria e Confeitaria 13 de Maio, em homenagem à praça onde estava localizada (atual Diogo de Vasconcelos). “Mas é claro que o nome está errado. Todos os comércios de italianos levam o sobrenome da família e a padaria tem que se chamar Savassi”, disse Danilo, na época com 18 anos, ao pai – Hugo. Os papéis estavam prontos para divulgar o estabelecimento, mas, de imediato, o pai acatou o desejo do filho e mandou refazer tudo para a tão esperada data de abertura da Padaria e Confeitaria Savassi.
No centro da praça, o local era perfeito para o encontro dos jovens e eles gostavam tanto dali que, de tanto ocupar a entrada da padaria, impediam a entrada dos clientes. Era preciso um empurrãozinho dos funcionários para abrir passagem. E foi essa paixão de um bando de jovens que fez o nome da padaria ganhar força e deu nome para a região.
Apesar da presença diária da conhecida, e temida, turma, em 19 de agosto de 1942 nenhum deles apareceu na padaria. Enfurecido com o ataque de submarinos alemães contra navios brasileiros dias antes, o povo decidiu saquear, quebrar e pôr fogo em todos os estabelecimentos de imigrantes italianos e alemães. De manhã, na primeira tentativa, o bando viu surgir de uma das janelas um jovem com a farda do Exército e uma bandeira verde e amarela, clamando para que ninguém invadisse a padaria. “Sou brasileiro e estou pronto para lutar pelo Brasil”, gritou o segundo-tenente do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), Danilo Savassi.
Por ora, conseguiu persuadi-los, mas, à tarde, eles voltaram e, desta vez, o grupo reuniu quase 10 mil furiosos. “Os apelos foram em vão”, recorda o herdeiro da padaria e, por causa do quebra-quebra, a Savassi ficou fechada por 10 meses, até a Justiça obrigar o Estado a pagar um montante que ajudaria na reconstrução.
Se nas festas a turma era chamada para evitar brigas, a tropa de segurança pouco tinha a fazer naquele dia na praça. Até porque, o negócio deles era namorar e brigas só quando eram provocados. “O primeiro soco nunca era nosso”, brinca Sô Liga, apelido dado à Aloizio Mendes Campos, irmão mais novo do famoso Paulo, numa reunião com Rogério Tamm, Zeca Martins, Clívio e Pacífico Mascarenhas – integrantes da terceira e maior geração da Turma da Savassi. Quando o assobio era ouvido – e olha que até no litoral capixaba teve quem o escutou – era certeza de confusão, e, se tinha um na briga, “todos entravam”, recordam.
Mas, a marca do grupo – e dos “anos dourados” – nunca foi a violência. Nada de revólver e tiro. As brigas eram na mão. E a especialidade mesmo era a paquera. Seja no footing da Praça da Liberdade, na “ginástica” para tentar ver os joelhos das estudantes – “era o sonho de qualquer um” – ou nas tradicionais serenatas, sempre era motivo para tentar arrumar uma namorada. Mas a maioria das vezes era um amor platônico sem nunca ter tido a oportunidade de começar o relacionamento.
A única chance, praticamente, era um recado a um funcionário da padaria ou um convite para uma das festas. Eles estavam livres de tentar penetrar e tinham até convite. Mas, por muitas noites precisaram do apoio de um revendedor de cerveja que lhes contava o endereço da maior entrega de chopp do dia e era para lá que eles iam. Até que uma noite, numa festa, quase familiar, na casa do vice-governador Clóvis Salgado os mais de 20 penetras tiveram o tempo exato “do apagar das luzes” para sair. Mas, na hora de cantar parabéns, uma ausência considerável: o bolo tinha sido levado junto.
Avenida Afonso Pena, 759. Em 1920, o grupo Cinemas S.A inaugura uma sala no Centro de Belo Horizonte, em alusão ao francês e industrial da sétima arte Charles Pathé. Treze anos passados e as portas cerradas depois da última sessão, desta vez, seriam em definitivo – pelo menos naquele local. Quase três décadas depois do lançamento da sala, em 1948, para atender a demanda dos moradores do Bairro Funcionários, são abertas as portas do novo Cine Pathé, na Avenida Cristóvão Colombo, 315. “Começava uma história de amor de gerações de belo-horizontinos com um cinema de bairro”, comenta a doutora em sociologia, ex-secretária estadual e municipal de BH de Cultura, e, principalmente, moradora da Savassi, Celina Albano, no livro, de sua autoria, Cine Pathé, da coleção ‘BH. A Cidade de cada um’.
Dali para frente, depois das 22h – quando a padaria fechava –, a Turma da Savassi tinha um novo point. Fosse numa das mil confortáveis poltronas ou do lado de fora para continuar o bate-papo e a paquera que se arrastava desde a saída dos colégios. E era só o último espectador sair para a turma entrar em ação madrugada adentro. O letreiro luminoso indicando o nome do filme mostrava qual seria exibido no dia seguinte, mas, ao amanhecer, o que se lia eram trocadilhos pornográficos que obrigavam as irmãs de caridade a pedir para as colegiais olharem para o lado oposto, quando passavam de escolar pela porta do cinema. Até a gerência desembaralhar as letrinhas, a brincadeira rendia boas risadas para os adolescentes.
Para a turma, o ingresso do cinema era quase sempre gratuito. Bastava pular a grade dos fundos e escolher a poltrona. Valia de tudo para assistir a um dos clássicos. E nos dois casos o ambiente era familiar. “Poder ir a pé e ter na plateia muita gente conhecida dava um clima “de reunião entre amigos. Além de não correr o risco de alguém se sentar perto de algum “tarado””, recorda Celina Albano, numa das 103 páginas sobre o Pathé. Mas, pouco a pouco, os cinemas de bairro foram substituídos pela tecnologia das salas em shoppings centers. Bravamente, o Cine Pathé resistiu até o fim dos anos 90, dando lugar a uma igreja evangélica e, hoje, abrigando mais um estacionamento.
“Ah… se essa praça falasse”, diz o compositor, pianista, violonista, entusiasta das histórias da Savassi e, por muitos anos, morador da Rua Paraíba, 1.295, Pacífico Mascarenhas. De Milton Nascimento ao Skank, gerações viveram e conviveram na mesma praça e a prefeitura promete uma reorganização do espaço público. Esperado há anos, o projeto deve ter impacto semelhante ao da inauguração da padaria, à instalação do Pirulito, que, por 13 anos, saiu da Praça Sete para o cruzamento das avenidas Getúlio Vargas e Cristóvão Colombo e da última grande reordenação da praça, com o fechamento de quarteirões em meados da década de 80.
Na comemoração do aniversário de 70 anos, Pacífico prepara uma programação com grandes nomes da MPB e personagens da história da Savassi. No sábado seguinte à data de inauguração da padaria, o festejo deve começar cedo e encerrar à meia-noite, com um caminhão percorrendo as principais ruas da região com um piano, numa serenata como nos tempos dourados. Em cada esquina da Praça Diogo de Vasconcelos estão previstos shows simultâneos e a inauguração de um monumento em homenagem à Turma da Savassi, com a frase “Por onde quer que eu passe acabo sempre é na Savassi”.
Na data será lançado um CD com gravações de músicas sobre a praça, a turma, o Pathé e outros ícones dos 70 anos, com a participação de Gilberto Mascarenhas, Cliff Korman Quartet, Gilberto Santana, Afonsinho, Suzana e Bob Tostes, Renato Motha, Beto Lopes, Marilton Borges, Os Cariocas, Sérgio Santos e Paula Santoro. Haverá ainda um almoço de confraternização para 180 convidados, entre integrantes da Turma da Savassi e de outras – que antes eram rivais. ATUALIZE-SE:
1 - Padaria e Confeitaria Savassi:
Por 37 anos, a porta da padaria foi ponto de encontro da turma e deu nome à região.
2 - Novo endereço da Padaria e Confeitaria Savassi:
Em 1977, a família Savassi vende o lote da Praça Diogo de Vasconcelos e a padaria muda de endereço.
3 - Cine Pathé:
Depois do fechamento da padaria, o cinema era um dos lugares de diversão da juventude, que muitas vezes dava um jeito de entrar sem pagar.
4 - Milton Nascimento e Wágner Tiso:
Até então desconhecidos, Milton e Wágner moraram na Pensão da Dona Maria por cerca de oito meses, até serem apresentados à nata da MPB no Rio de Janeiro.
5 - Dona Júlia Kubistchek:
Mãe do presidente JK, sempre recebia visitas do filho.
6 - Tancredo Neves:
Morou por alguns anos numa das esquinas da Praça Diogo de Vasconcelos, depois de comprar a casa de Maurício Andrade. (fundador da Andrade Gutierrez)
7 - Pacífico Mascarenhas:
Muitas das travessuras do compositor viraram letras contando a história da Savassi.
8 - José Maria Alkmin:
O político morou numa casa onde está em construção um hotel.
9 - Frei Betto: O ilustre franciscano também foi morador da Savassi.
10 - Paulo Mendes Campos:
A família Mendes Campos morou em dois lugares da Savassi e, além de Paulo, os outros quatro irmãos também se divertiram numa das gerações da turma.
11 - Fernando Sabino:
Morador do limite da Savassi, de frente para a Praça da Liberdade, foi eternizado ao lado dos outros três "Cavaleiros mineiros do apocalipse" (Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino) pelas muitas histórias vividas na região.
12 - Fernando Pavan:
O atleta olímpico era sempre ativo na Turma da Savassi e nos clubes.