A história...

21/02/2010 10:42

Em 30 de junho de 1963, as seis linhas remanescentes de bondes em Belo Horizonte fazem sua última viagem e os trilhos são retirados das ruas. Simbolicamente, significava o ponto final do modal de transporte, considerado obsoleto. Em contrapartida, a chegada do progresso com a propagação dos automóveis era sinônimo de status, desde já e para sempre. Apesar das reclamações a respeito da lotação e de problemas corriqueiros, os belo-horizontinos mal sabiam que, quase cinco décadas depois, o sistema articulado e longe dos engarrafamentos monstruosos da metrópole de mais de 1,2 milhão de veículos poderia ser modelo para um novo sistema de transporte na capital.

Um dos motivos para a falência dos bondes e sua substituição foi a falta de investimento público, diz a pesquisadora e diretora do Arquivo Público de Belo Horizonte, Maria do Carmo Andrade Gomes. "BH já foi moderna. Existia uma política pública apropriada", afirma a autora do livro Omnibus: Uma história dos transportes coletivos em BH. Em 1947, os trilhos somavam 73 quilômetros e os veículos carregavam 73 milhões de passageiros/ano, mas, a data representa também o início da decadência do transporte, pouco a pouco substituído pelos ônibus, trólebus e o trem metropolitano.

Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o sistema de bondes era o principal modal, mas os ônibus e os trólebus, a partir de 1953, tinham coparticipação no transporte público. Cada um atendia a determinada demanda. E, reafirmando o entendimento dos principais conhecedores de engenharia de tráfego e transportes, a pesquisadora considera o formato intermodal o ideal para desafogar o trânsito. "A alternativa é aliar todos os modelos", diz ao citar o exemplo de Paris: "Lá ainda tem bonde. E as mulheres chiquérrimas andam de metrô", afirma. 

Imagine sair da Rua Grão Mogol, no Bairro Carmo-Sion, e percorrer 14 quilômetros em transporte público, em via exclusiva, até as margens da Lagoa da Pampulha, com apenas uma troca de veículo na Praça 7, no Centro. Ou cruzar a cidade de Leste a Oeste, passando pelos pontos mais importantes, sem precisar de dar intermináveis voltas pelos bairros. Os percursos são concretos e não saíram das pranchetas de urbanistas preocupados em projetar a Belo Horizonte do futuro ou o transporte de massa que a capital sonha em ter na Copa do Mundo de 2014. Muito pelo contrário. Essas eram apenas duas das muitas possibilidades que tinham os belo-horizontinos há 60 anos, com um modelo de transporte que somava 73 quilômetros de linhas, mais que o dobro dos atuais 28 quilômetros do metrô.

No auge de sua eficiência, o sistema de bondes de Belo Horizonte chegou a transportar 73 milhões de passageiros por ano num dos 75 veículos – um sexto do total de pessoas levadas pelos 2.854 ônibus municipais no ano passado ou pouco mais da metade das passagens vendidas para o metrô –, com tamanha articulação que possibilitava a locomoção pelos quatro cantos da cidade. Em pleno terceiro milênio, ver um mapa semelhante ao do percurso dos bondes na década de 1950 – seja para o metrô, seja para os corredores exclusivos de ônibus, seja para o veículo leve sobre trilhos, o parente mais próximo do antigo sistema – só é possível no papel, em um dos projetos do poder público que ainda não conseguiram romper a fase de promessa.

Desde a implantação dos primeiros trilhos na nova capital de Minas, no começo do século passado, o sistema de bondes teve duas fases distintas: nas duas primeiras décadas era visto, muitas vezes, como transporte para grã-fino e a partir da proliferação de linhas, tendo como destinação atender aos trabalhadores e à parcela da população que não dispunha de automóveis – objeto raro e de luxo no Brasil até meados da segunda metade do século 20.

Apenas 10 anos depois da primeira viagem, em 1912, a extensão da malha de bondes ultrapassaria o atual traçado do metrô, com 30 quilômetros de trilhos ante os 28 quilômetros. E diferentemente do único sentido do ramal Eldorado-Vilarinho aos poucos eram costuradas linhas para possibilitar o deslocamento. Da Gameleira, Santo Antônio, Carmo, Serra, Cachoeirinha, Renascença, Carlos Prates... e até da Pampulha partiriam bondes tendo como parada obrigatória os abrigos da Praça Sete de Setembro. Dali, bastava o passageiro descer e escolher o próximo destino por apenas um tostão – valor da passagem, equivalente a 80 réis, moeda da época.

Os ramais podiam ter destinação específica, como o criado para ligar a Lagoinha à vila Santo André, atual Região Nordeste. Como da Pedreira Prado Lopes – primeiro aglomerado da capital – eram extraídas as pedras usadas nas construções de ruas e casas, era preciso garantir o transporte dos operários para o Centro e, na década de 1940, a Rua Pedro Lessa foi prolongada, o que obrigou a demolição de parte da imensa rocha, e dali e para ali seguiria a linha Santo André, com 1.350 metros de extensão.

Na mesma época, com a inauguração do conjunto arquitetônico da Pampulha, era possível cruzar toda a Avenida Antônio Carlos para chegar ao Iate Tênis Clube ou a um dos atrativos às margens da Lagoa da Pampulha. Com uma vara de pescar na mão, o garoto Zulu – apelido de José Eloy Pereira da Rocha –, então com seus 15 anos, pegava o bonde Renascença, na Rua Jacuí, até a Praça Sete e, de lá, descia, sem pagar na maioria das vezes, apanhava outro bonde. Desta vez, era o Pampulha. A brincadeira rendia o domingo até tarde. Depois de horas à beira da lagoa, na volta para casa, os passageiros ainda eram obrigados a conviver com o cheiro dos três ou quatro piaus na sacola do moleque. “Mas até passava rápido. Não tinha trânsito. Carro dava para apontar. A maioria era bicicleta e carroça”, recorda, aos 76 anos. 

Dos anos 1940 até os 1970, o transporte elétrico teve um período de abandono em todo o mundo. Em BH, a partir de 1950, com a entrada em circulação dos trólebus e a ascensão dos ônibus, os bondes foram aposentados aos poucos. Até a parada definitiva do transporte em 1963. Obsoleto, o modal passou a ser deixado de lado, mas, segundo o historiador e jornalista norte-americano Allen Morrison, um dos principais pesquisadores dos bondes no mundo e responsável pela elaboração do mapa ao lado baseando-se em plantas do Arquivo Público de Belo Horizonte e trabalhos sobre o tema, "no fim da década de 1970, as cidades voltam a investir no modelo, bem mais moderno.

Atualmente, 136 cidades têm o sistema e outras 50 estão em construção. Mas a América Latina resiste, exceto Buenos Aires, que conta com duas linhas", explica o autor dos livros Os bondes no Brasil, Os bondes no Chile e Na América Latina de Automóvel e desde 1998 responsável por um site com mais de 1,5 mil páginas e 3,5 mil fotografias sobre o transporte sobre trilhos no mundo.

CRONOLOGIA:

1902: Em 7 de setembro, são inauguradas as primeiras linhas de bonde elétrico pela Companhia Ferro-Carril de Belo Horizonte, seguindo quatro trajetos: Quartel, Mercado, Rua Ceará e Rua Pernambuco.

1903: É inaugurado o primeiro abrigo de passageiros na Avenida Afonso Pena, esquina com Rua Ceará.

1907: Cinco anos depois da abertas as primeiras linhas, BH tem 24 quilômetros de trilhos, divididos em sete linhas. No mesmo ano, é inaugurado o abrigo na Praça 13 de Maio (atual Praça Diogo de Vasconcelos, na Savassi), que, a partir de 1908, receberia o bonde fechado, construído em peroba e canela e reservado a autoridades.

1912: O sistema tem 30 quilômetros de extensão para atender os 38.822 habitantes da capital. No ano, os 39 veículos transportariam mais de 5 milhões de passageiros.

1923: BH ganha a primeira linha de auto-ônibus, para suprir a carência do atendimento de bondes, que percorria poucos bairros.

1928: Por causa de uma forte seca, o número de bondes em operação é reduzido. Em contrapartida, a prefeitura implanta novas linhas de auto-ônibus, com tarifa de 300 réis. O serviço é extinto em dezembro com a temporada de chuvas e a normalização do fornecimento de energia.

1937: Inauguração de mais dois abrigos na Praça 7, ponto obrigatório para os bondes de todas as linhas. Com as novas paradas, é demolido o prédio da Agência de Bondes, no cruzamento da Avenida Afonso Pena com Rua da Bahia, e o “centro nervoso” passa a ser Afonso Pena esquina com Amazonas.

1942: Em plena Segunda Guerra Mundial, é proibida a circulação de veículos particulares, por causa da escassez de combustível.

1947: Inauguração do ramal da Pampulha. Na década de 1940, são construídos três novos ramais: Carmo, Pedro II e Cachoeirinha. O ano é considerado auge do fluxo de pessoas, com 73 milhões de passageiros, 75 bondes e 73 quilômetros de trilhos.

1949: Por causa do sucateamento dos bondes, a prefeitura investe pouco a pouco nos ônibus.

1950: Os bondes param de circular na Avenida Afonso Pena e são retirados os pontos da Praça 7. Tem início a circulação de uma linha própria para bagagem.

1951: O prefeito Américo Renné Giannetti assume o cargo defendendo a troca do sistema de bondes pelos trólebus.

1957: Mais da metade da frota está em oficinas esperando a compra de peças para reparos. Apenas 25 bondes operam.

1963: Fim da linha para os bondes em BH. As últimas linhas (Cachoeirinha, Gameleira, Bom Jesus, Horto, Padre Eustáquio e Cidade Ozanam) são desativadas.

2005: A prefeitura apresenta projeto para uma linha turística de bonde, ligando a Praça Raul Soares ao Museu Histórico Abílio Barreto, mas o projeto não sai do papel. 

O último Motorneiro:

No fatídico último dia, à 0h40, o bonde 68 parou na porta do Hospital Militar, no Bairro Santa Efigênia, Região Leste, e os passageiros desceram. A cena não se repetiria. Era a última viagem da linha e, antes de ir para casa, Vanocy de Oliveira Barbosa, deu entrevista para a TV e relatou histórias vividas nos 18 anos de trabalho como motorneiro.

Além da linha do Hospital Militar, ele guiou em outras duas: Bonfim e Santo Antônio. Mas a qualidade do transporte público não se difere muito do atual sistema de ônibus. "Bonde andava sempre lotado. Dependurava gente por todo lado. Eram 10 bancos para cinco pessoas cada e o resto se dependurava nos balaustres", recorda-se o motorneiro, hoje com 91 anos. Além disso, o sucateamento dos veículos e a falta de investimentos do Departamento de Bondes e Ônibus resultavam na garagem da Avenida Olegário Maciel, atual Mercado Novo, sempre lotada. "A gente estava para ver a hora em que os bondes iam desmanchar com todo mundo dentro", diz Vanocy

E para o formato dos bondes sobreviver a alguns "obstáculos" da vida contemporânea seria preciso fazer adaptações. Bem no meio das ruas, os postes de eletricidade eram sempre perigo para os passageiros que se dependuravam na parte externa e a cada curva era certeza de que um bateria a cabeça. Ou então a necessidade de motores mais potentes para evitar que o bonde ficasse parado nas subidas por causa da molecagem dos garotos. "Eles ensaboavam a linha e o veículo não conseguia passar daquele trecho. Era preciso despejar areia", recorda Vanocy.